Medos de uma criança nos anos 70 e 80 – Parte II

 Medo TV

As crianças não precisavam assistir a filmes de terror para sentir medo. Havia muita coisa apavorante na programação infantil, desde os desenhos animados até os programas que usavam atores fantasiados de animais ou criaturas fantásticas ou, ainda, tinham fantoches como personagens. Muito disso, visto depois que se cresce,  sob um olhar adulto, parece risível, mas a imaginação infantil é muito fértil e a criança é muito impressionável: qualquer faísca já é suficiente para provocar um incêndio. É lógico que muita coisa não foi projetada para provocar medo na criançada, acontecia inesperada e espontaneamente. Além disso, não era nem de longe algo unânime: aquilo que me assustava de repente não produzia efeito nenhum para um amiguinho meu. A programação adulta, embora cobiçada pelas crianças, era pouco vista, só às escondidas, num eventual momento de distração dos pais ou por meio de uma “vitória pelo cansaço” – quando, depois de muita insistência, o pai ou a mãe permitia que se assistisse a determinado programa “proibido”, mas sempre com a advertência de que, depois, você tinha que se virar com o seu medo: “Assistiu porque quis”, “Eu avisei”, “Não vamos deixar você dormir conosco” etc.

 Talvez a lembrança mais antiga seja o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Esse programa foi um celeiro dos meus primeiros e grandes terrores e, pelos comentários que já ouvi por aí, para muitas outras pessoas. Dele saíram a Cuca, a Emília, o Minotauro e o Capitão Gancho.

A Cuca era o personagem que mais me metia medo. É uma criatura bizarra, grosso modo, um jacaré com uma cabeleira loira e que, para piorar, vivia numa gruta, que é algo que me fascinava e me dava um certo medo ao mesmo tempo – o mistério e a escuridão dos lugares subterrâneos. Alguns anos depois, em Casa do Espanto 1, apareceu um monstro que remete à Cuca.

A Emília não me dava propriamente medo, mas incomodava. Se bonecas  sem vida já podem ser assustadoras, imagine uma que fala e anda – lembrando que a Anabelle original, que está lá no museu dos Warren, também é uma boneca de pano.

Um personagem que foi bastante aterrador e que apareceu em um arco de temporada foi o mitológico Minotauro: era simplesmente um homem com cabeça de touro e, a meu ver, essa simplicidade dava um tom realista – e por isso assustador – ao monstro– graças a Deus não existia CGI naqueles tempos; sou defensor dos efeitos práticos.

Outro, que não era boneco nem monstro, mas uma pessoa, foi o Capitão Gancho. Era um vilão assustador, graças à incrível interpretação do Dary Reis. O que me dava mais medo era a voz rouca do ator e os olhos azuis fantasmagóricos, somados à roupa extravagante do século XVIII.


 

Famous Monsters do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Houve mais uma pessoa no Sítio que me meteu medo: a Zilka Salaberry, quando fez papel de bruxa. Grande atriz que era, este papel foi o oposto da doce Dona Benta, e provocou arrepios.


Apesar de seu aspecto lúdico, os elementos oníricos, fantásticos e absurdos dos desenhos animados por vezes produziam medo. Alguns episódios do Pica-Pau, desenho animado que sempre me provocou muitos risos, eram assustadores para mim, em especial, O  Fantasma da Ópera, Seu Melhor Duende, Alameda para Bali, Pesadelo Dourado e Segure essas Pedras.

No Fantasma da Ópera (que não tem nada a ver com o célebre romance de Gaston Leroux), temos todos os ingredientes góticos: uma cidade-fantasma (lugares abandonados são sinistros), fantasmas de lençol e, para finalizar, a cena mais assustadora, o fantasma de um alce, na verdade, uma cabeça empalhada de alce que “volta à vida” e que recupera seu corpo (materializa-se completamente), arrebentando a parede onde estava pendurada como troféu.

Outro episódio, Seu Melhor Duende, era problemático no fim, quando o Pica-Pau, irritado com o duende por ele só ter transformado seus desejos em problemas, deseja que este vá para o inferno. O duende cai num abismo que se abre no chão e chega diante de uma versão satânica do Pica-Pau. Coisa sombria!

Em Alameda para Bali, temos uma versão gigantesca e animada de uma típica máscara de demônio balinês, um vulcão com chamas infernais, uma misteriosa dançarina balinesa e uma assustadora e enorme planta carnívora, que tenta devorar o Zeca Urubu. Certamente foi meu primeiro contato com plantas carnívoras, esses seres fantásticos, e eu não duvido nada de que, em algum ponto ainda inexplorado de nosso planeta, existam plantas enormes capazes de devorar uma pessoa.

Em Pesadelo Dourado, temos um Pica-Pau malandro, que responde ao anúncio de classificado amoroso de uma mulher rica por interesse em realizar suas orgias alimentares, mas que se vê prisioneiro dessa mesma mulher, um verdadeiro dragão, que deseja transformar o passarinho em seu marido a qualquer custo, não se importando com o fato de ele não ter gostado dela – e acaba conseguindo. O desenho é um jogo de gato e rato, uma perseguição obsessiva, e aquela ricaça grandalhona, aparecendo em todos os lugares de sua imensa mansão, tal qual um fantasma, e perseguindo o Pica-Pau sempre estando um passo adiante dele, é uma coisa assustadora.

Por fim, o episódio Segure essas Pedras: este me dava agonia. No desenho, temos um parque onde existem grandes pedras que estão equilibradas no topo de estacas muito compridas e que começam a balançar por causa de qualquer barulho. Então, Smedley, que é uma espécie de zelador do parque, tem que garantir que essas pedras não caiam, e ele é atormentado o tempo todo pelo sacana Picolino, o pinguinzinho. Eu assistia a esse desenho e me colocava no lugar do Smedley; acho que por isso eu ficava agoniado e tinha um medo danado daquelas pedras caírem. É uma coisa bastante surrealista, aquelas pedras em cima das estacas remetem a um quadro do Salvador Dali ou do Magritte, porém, se um adulto enxergar aquelas pedras em cima de estacas como uma metáfora de certos problemas da vida, a coisa já não fica tão absurda.

 

Os terrores do Pica-Pau.



A série animada Johnny Quest teve um episódio no qual uma múmia ressuscitava e arrebentava as ripas de madeira que cobriam a entrada da tumba. Essa cena fazia parte da abertura do desenho e era sempre arrepiante ver aquela múmia trôpega. É uma animação muito bem-feita da Hanna-Barbera, que ainda hoje impressiona.

 

A múmia ressuscitada e cambaleante de Johnny Quest.



Muita gente se lembra de Piu-Piu e Frajola, do segundo sempre perseguindo e tentando devorar o primeiro. Quem poderia imaginar que aquele passarinho fofo poderia virar o jogo e amedrontar não só o Frajola, mas as crianças que estivessem assistindo? Foi isso que aconteceu no episódio inspirado em O Médico e o Monstro. Piu-Piu, para se esconder de Frajola acaba entrando num vidro que contém uma fórmula química secreta e, a partir daí, fica intermitentemente se transformando num pássaro gigantesco e monstruoso e voltando à sua forma natural.


Piu-Piu como Mr. Hyde.

A Disney tem, entre suas animações, algumas coisas bem medonhas. Para mim, Branca de Neve é o desenho que possui o maior número de elementos aterrorizantes. A rainha, o espelho mágico, porém, o mais assustador é um determinado cenário: a Floresta Negra, para onde Branca de Neve foge. A noite, que cai mais depressa quando se embrenha no mato, a coruja, as árvores retorcidas e desfolhadas que criam garras, os olhos brilhantes que surgem por toda a parte, o vento, o buraco no chão, isso tudo é muito gótico. E por falar em cenário tenebroso, existe outro, aquele pântano para onde Penny, a menina raptada, é levada, e aquela caverna que fica inundada pela maré alta e onde a menina é obrigada a descer para pegar diamantes que foram escondidos por um pirata, em Bernardo e Bianca. Agora, o campeão de terror do Tio Disney é aquele exército de zumbis de O Caldeirão Mágico.


O exército de mortos-vivos de O Caldeirão Mágico.

 

Enquanto eu vasculhava minha memória para achar mais algum desenho que me assustava, eu acabei recordando de outro personagem bizarro que apareceu num desenho do Pica-Pau: um autômato que, nas horas cheias, saía de uma portinha e ia deslizando num trilho para bater com seu martelo no sino do campanário da igreja. Hoje eu sei por que ele me metia medo: porque ele lembra o Golem da versão do cinema (um clássico do expressionismo alemão, de 1924). O filme é baseado no folclore judaico e conta a história de um boneco de barro que ganha vida por meio da magia cabalística de um rabino.


O Golem do Pica-Pau e o próprio, em sua versão cinematográfica.





No próximo post, eu vou falar sobre os programas de adultos que me pareciam assustadores e sobre alguns filmes de terror marcantes daquela época.

O tratamento monocromático dado às imagens deste post é uma homenagem aos saudosos gibis da Editora Bloch, especialmente os da série Capitão Mistério, que continham as histórias da Marvel Terror (Drácula, Lobisomem, Frankenstein, A Múmia) e da Charlton Publishing. As fotos das reportagens sobre filmes e as fotonovelas que faziam parte do contéudo dessas revistas eram sempre publicadas com esse tratamento.



 

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