O Mescalito era um Poodle Bípede
Desenho: Poodle Mescalito, por Adribas.
Poodles dançarinos me incomodam. Poodles dançarinos são
aqueles poodles treinados para andar sobre as duas patas, eretos, como se
fossem pessoas, em espetáculos de circo ou shows de variedades de TV. Na
verdade, não é só o fato de eles andarem sobre as duas patas traseiras que me
incomoda, mas a questão do estilo da tosa, no qual restam aqueles pompons de
pelo nas pontas das orelhas, no topo da cabeça e na ponta do rabo, deixando-os
com visual de “cachorro de madame” (ou de puxador de cortina. Uma vez, um amigo
se aproximou da janela da minha casa, pegou a ponta do puxador da cortina,
encostou na própria orelha e disse com uma expressão cínica: “Um poodle”. Eu e
os demais presentes entendemos a piada, mas jamais compreendemos o porquê da
performance, já que cães não tinham sido objeto do bate-papo daquela tarde.)
Essas aparições são raras hoje em dia, já que a maioria dos circos
parou de trabalhar com animais, porém, volta e meia eu ainda vejo uma
apresentação ou outra no YouTube, em
geral, VTs de canais estrangeiros. O visual “cachorro de madame” também ficou
incomum, muito provavelmente por ter saído de moda, apesar do boom de
veterinárias que oferecem o serviço de banho e tosa. Os pais e mães de poodles
preferem deixar seus filhotes ao natural – o que eu acho bem mais bonito, eles
ficam se parecendo com carneirinhos – no máximo, baixando um pouco a pelagem.
Eu usei a palavra incômodo porque não chega a ser um medo,
entretanto, assim como existem medos irracionais, sem base, há os incômodos
irracionais. Eu nunca vi pessoalmente um poodle andando sobre duas patas. Já
tive um cachorro, mas não era um poodle. Tenho amigos que tiveram poodles, mas
o contato que tive com esses animaizinhos foi sempre positivo, amigável.
Vamos entrar no terreno da Psicanálise. “Ah!”, você diria,
“Deve ser alguma coisa reprimida da infância”. Não. Eu já tomei sustos com
cachorros, eu dei azar algumas vezes de passar distraído, perdido em meus
pensamentos, em frente ao portão de uma casa e o cachorro começar a latir
muito, quase me provocando um ataque cardíaco, mas é tudo, nunca fui mordido,
nenhum cão avançou em mim, logo, esse incômodo não tem razão de ser. Porém, ele
é. Existe. Sendo assim, eu desisto de buscar a raiz desse problema – que não
chega a ser efetivamente um problema, raramente penso nisso – e aceito essa
excêntrica aflição como parte do meu pacote.
Como eu sei que se trata de um incômodo? Porque, quando
vejo num vídeo um poodle-tosado-com-pompons
andando ereto, me dá “coisa”, como diz o Dr. Chapatin. Deve ser porque cães não
andam naturalmente eretos. Não foram feitos para isso (na verdade, nem nós,
vide nossos atávicos problemas de coluna.) Aliás, falando em animais bípedes de
ocasião, recentemente houve um “andaço” de vídeos mostrando bodes e cabras
andando sobre duas patas, com uma trilha sonora sinistra ao fundo. Parece que
aconteceu na Índia. Estes, admito, medonhos mesmo (fim dos tempos? Bichos
“guiados” por sacis? A revolução dos bichos começou?)
Mas a maior prova de que essa coisa desimportante me afeta
de algum modo foi um sonho que eu tive e que me deu arrepios ao despertar.
Literalmente.
Foi numa noite em que eu tinha começado a ler A Erva do
Diabo, de Carlos Castaneda. Nessa primeira leitura, eu devorei muitas
páginas porque estava ansioso para ler sobre o encontro do Castaneda com o
Mescalito que, grosso modo, seria a entidade ou espírito da planta, que é o
peiote.
Horas depois, fui dormir e sonhei. No sonho, eu estava numa
espaço a céu aberto, um terreiro ou quintal muito amplo. Era noite. Pelo que
lembro, havia casas ao longe, mas só era possível ver as silhuetas. O céu
estava bem escuro, mas havia uma iluminação de poste naquele local. Não sei se
eu estava só ou acompanhado, mas eu soube de alguma maneira que o Mescalito
apareceria. Alguém me disse ou minha própria mente me passou essa informação. Nos
sonhos, nunca se sabe ao certo como certas coisas acontecem, até porque a
memória vem editada, como se o sonho fosse um videotape cheio de cortes: num
momento, você está, por exemplo, no interior de um casa, já no instante
seguinte, você se encontra numa praia. O tempo dá saltos, muitas vezes, bruscos.
Bem, logo depois que eu soube que receberia essa “visita”,
eis que surge um poodle andando sobre as patas traseiras, olhando-me fixamente
e vindo na minha direção. Ele tinha o pelo marrom e vestia algum tipo de roupa.
Quando o meu Eu do sonho viu aquela imagem, ele sentiu calafrios. Foi uma visão
aterradora e, ao mesmo tempo, maravilhosa. E o sonho terminou ali. Se houve
mais coisas, elas ficaram arquivadas no reino do subconsciente. Ao longo do
dia, sempre que eu me lembrava da visão do Poodle Mescalito, eu sentia um frio
na espinha. Isso aconteceu há vinte anos.
A lembrança do sonho ainda hoje é muito nítida.
Segundo Don Juan, el brujo, uma good trip e
brincadeiras do Mescalito são sinais de que ele “aceitou” o aprendiz de
feiticeiro. Apesar do meu Eu ter sentido medo no sonho, eu não o considero um
pesadelo; foi um sonho fantástico, lembro-me dele com afeto. Espero tê-lo
novamente. E acho que o fato do Mescalito se manifestar para mim como um Poodle
Bípede foi uma grande brincadeira. Eu estive no Nagual, encontrei-me com o Mescalito sem mesmo
precisar ir ao México, sem passar por um treinamento xamânico e sem ter que mascar
o amargo e fibroso botão de peiote. Um privilégio.
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