Cada um tem seu próprio buraco negro, sem precisar do CERN ou de ir a Tunguska – um breve ensaio sobre Black Hole, de Charles Burns
Fui presenteado por amigos queridos com a graphic novel Black Hole, do desenhista norte-americano Charles Burns, criado na chuvosa Seattle, terra que viu surgir o deprimido e algo gótico grunge, nos anos 90, e onde muito antes veio à luz o virtuoso Jimmy Hendrix. No meio desse caminho com terra molhada, em 1972, a espetacular banda canadense The Guess Who gravou o seu ótimo álbum ao vivo, Live at the Paramount.
Essa doença é sexualmente transmitida e, segundo alguns personagens doidões, que vivem viajando na maconha, no ácido e na cerveja, ela teria vindo de um planeta chamado Xeno. Esses pirados chamam a doença de Bug. Essa referência a AIDS me fez lembrar do filme It Follows: no enredo desse filme, o que se transmite é a capacidade de ver e de ser perseguido por pessoas mortas até que se morra por isso, e o único modo de se livrar desse perigo e dessas visões apavorantes é passar adiante essa doença, por meio do sexo.
Eu conheci o Charles Burns nos anos 80, nas páginas da Heavy Metal, que, à época, vinha publicando sua série chamada El Borbah. Esse personagem se parece com El Santo, um lutador mexicano de luta-livre e ator que foi muito famoso nos anos 60. O traço do Burns é incrível. É limpo, ao mesmo tempo que ele usa muito a cor preta (o contrário de Moebius e do nosso Watson Portela, por exemplo), e realista. Esse uso do preto lembra um pouco o desenho nordestino que vemos nos livrinhos de literatura de cordel. Alguns traços fisionômicos dos personagens remetem a ilustrações ameríndias, especialmente as de temática xamânica. Os cenários, figurinos e todo o mobiliário são muito bem detalhados.
A história contada em Black Hole é um drama existencial vivenciado por dois rapazes e duas garotas, que estão se despedindo da adolescência e chegando à vida adulta, carregando todos os fardos da juventude e começando a experimentar outros da maturidade. Nessa bagagem pesada e, muitas vezes, sem alça, temos as primeiras experiências sexuais, os primeiros amores, obsessivos e agônicos, daqueles que doem, decepções, ansiedades, angústias, primeiros empregos e bad trips com drogas.
Para piorar a situação, ainda circula uma doença bizarra que provoca mutações grotescas nos contaminados: um adquire no pescoço uma boca completa, com língua e dentes, e que ainda fala durante o sono, outra, uma espécie de rasgo nas costas e uma abertura na sola do pé que remete a uma vagina, uma terceira pessoa, uma moça, ganha uma cauda de cachorro que tem a propriedade de se recompor quando partida, tal qual o rabo de uma lagartixa. Certas pessoas ganham chifres, algumas perdem partes da cartilagem ou da pele do rosto, ficando completamente desfiguradas, e alguns personagens, que são mostrados no álbum de fotos da escola, remetem aos demônios de Clive Barker, especialmente aos que aparecem em Raça das Trevas.
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Os bugados clivebarkerianos de Black Hole. Espia a moça com as antenas, é muito Do Além, do Lovecraft. |
Há criaturas monstruosas, híbridas de gente, répteis e vermes, que povoam os pesadelos e viagens lisérgicas dos personagens – bad trips que nem o Timothy Leary ousou ter. Elas se assemelham muito às aberrações que costumam assombrar as páginas das obras do Junji-Ito. Esses monstros de Black Hole são bastante parecidos com os yurei e os yokai de mangás como Uzumaki e Fragmentos de Horror. São grotescos, profanos, impuros, repugnantes. São aberrações, freaks e é justamente assim que se sentem os personagens de Black Hole, especialmente os portadores da estranha doença: eles se sentem – e acabam mesmo sendo – excluídos. Muitos abandonam suas famílias, escolas ou trabalhos, indo viver no meio de uma floresta, acabando por constituir uma comunidade. São tragados pelo “buraco negro”. Antes mesmo do Bug, eles já haviam sido atraídos para esse buraco negro por causa da condição quase liminar que é a adolescência. Um adolescente pode facilmente se transformar num outsider ou num marginal, porque ele vive se equilibrando na linha bamba e tênue que separa o status quo da margem. Ele rejeita tudo ao mesmo tempo que sente a necessidade de ser aceito. Ele quer agradar, quer ser desejado, visto, ao mesmo tempo que deseja se esconder, isolar-se ou desagradar, romper, quebrar, distorcer.
O buraco negro é esse não lugar, escuro e que absorve até a luz. É esse vazio da incerteza, da falta de perspectiva ou das perspectivas irritantes para o espírito, como diziam Bergier e Pauwells, os magos despertos da Planeta. Todos nós já passamos perto desse buraco negro, fomos sugados por esse sinistro ralo cósmico e conseguimos sair, graças a uma Física mágica que só os animais possuem, mas ninguém está livre de reencontrá-lo. Ele vive nos rondando, está sempre por perto, não o vemos porque ele se vale de sua escuridão – e da nossa própria. Se olhamos para ele, ele nos olha de volta.
P.S.: Tunguska fica na Sibéria. Lá ocorreu uma estranha explosão provocada pela queda de um objeto celeste que devastou milhares de quilômetros, em 1908. Houve quem dissesse que o tal objeto celeste foi uma nave alienígena, antimatéria e até mesmo um miniburaco negro que acabou penetrando no nosso mundo. Quanto ao CERN, dizem que miniburacos negros quânticos podem se formar no grande colisor de Hádrons.
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