Medos de uma criança nos anos 70 e 80 – Parte I
A criança tem alto grau de sensibilidade e percebe coisas que mais ninguém sente. A sensibilidade infantil é bastante semelhante à do artista e à do médium.
Alguns medos infantis se
transformam em motivo de risada depois que se cresce, mas, naquela fase, eles
são coisa séria. Tiram noites de sono, tanto quanto dívidas ou problemas de
saúde deixam um adulto insone. Crianças passam boa parte de seu tempo numa
dimensão de fantasia que comumente se mistura e se confunde com a realidade que,
devido a essa fase do desenvolvimento psíquico, é ainda cercada de mistérios. Falta
a elas a experiência de saber que certas coisas são impossíveis no plano real
(serão mesmo?) ou são máscaras que escondem algo com fundo lógico, capaz de ser
esmiuçado, explicado e resolvido.
Mais uma vez eu programo minha
máquina do tempo para voltar à época de infância e de adolescência e lembrar de
coisas do folclore, lendas urbanas, personagens fictícios e da vida real, filmes,
programas de TV e de Rádio que
provocavam arrepios na espinha ou que causavam estranheza, incômodo e, em
certos casos, fascínio.
Folclore, lendas urbanas,
boatos e mentiras
Os bichos-papões
“Causos” de assombração –
quem não tem uma história sua ou de alguém conhecido para contar? Os causos de
assombração são um grande clássico nos medos da infância. Há alguns séculos, na
Europa, havia o costume de se reunir diante da lareira para ler em voz alta
relatos de livros ou contar narrativas de fantasmas nas noites frias de Natal.
Eu sempre fui fascinado por essas histórias e largava qualquer brincadeira
quando um adulto começava a contar um relato desse tipo. Lembro-me até hoje
detalhadamente de todos os “causos” que me contaram e ainda sinto um frio na
espinha quando me recordo deles.
Vampiros, lobisomens, múmias,
monstros do mato, alienígenas, demônios – nosso folclore é extremamente
rico em monstros. Temos elementais como o caboclo d’água, mula-sem-cabeça, boitatá,
saci, curupira, assombrações como o fantasma da caipora, o lobisomem. O lobisomem, para mim, era
o mais medonho, assim como as assombrações ígneas (segundo Câmara Cascudo, as que
se manifestam tendo luz ou fogo como componentes: boitatá, que seria uma cobra
flamejante, mãe do ouro, que seria uma bola de luz ou de fogo, mula-sem-cabeça,
que solta chamas pelo pescoço cortado ou que tem chamas no lugar da cabeça). A
versão da caipora que eu conheci, que seria uma espécie de espectro (porque no
folclore trata-se de um elemental de características semelhantes às do
curupira), também era muito medonha. Seria uma mulher com um longo vestido
branco e com cabelos negros bem compridos, que cobriam o seu rosto desfigurado
– isso me foi contado muitos anos antes do folclore asiático e seus fantasmas invadirem
o Ocidente (Kuntilanak, Mae Nak, as cinematográficas Sadako e Kaiako). Diferentes versões da famosa Mulher de
Branco, algumas delas urbanas, faziam parte da cosmogonia fantasmagórica que
assombrava o universo infantil. Outro fantasma que causava muitos arrepios era
a Loura da Dutra. Ela teria sido uma prostituta que pediu carona a um
caminhoneiro na Via Dutra e este acabou estuprando, matando e abandonando o
corpo da pobre moça na estrada. A partir daí, o espectro com sede de vingança
passou a aparecer na pista, próximo a uma curva perigosa, assustando os
motoristas e provocando muitos acidentes fatais. Às vezes, ela se materializava
no interior da cabine do caminhão, sentada no banco do carona. Eu tenho um tio
que diz tê-la visto, mas ele é um pouquinho mentiroso, então não dá para
confiar.
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Mae Nak, entidade do folclore tailandês. |
Mensagens subliminares, discos de vinil tocando ao contrário – o diabo e seus demônios também eram figurinhas carimbadas na infância. Histórias sobre possessões, pactos e exorcismos eram correntes, ouvia-se aqui e ali.
Algo que surgiu nos anos 70 foram os famosos boatos sobre mensagens satânicas gravadas ao contrário nos discos de vinil. Roberto Carlos, Xuxa, Balão Mágico, Fofão e Menudo são alguns dos artistas que teriam mensagens subliminares gravadas em algumas de suas canções. A Guerra dos Meninos, do Rei, que seria uma das músicas que contêm mensagens nem precisava, porque é uma canção estranha. Começa com um acorde menor, melancólico, a letra é enigmática e aquele menino cantando e semitonando levemente é meio arrepiante. O “Não se Reprima” do Menudo ao contrário se transforma em “Viver em Satã”. Isso era bem sinistro. Quando eu era criança, eu não tive oportunidade de testar nada disso, eu só ouvia as histórias e ficava curioso, só fui ouvir bem mais tarde, já adulto. A maior parte dessas mensagens é meio forçada. Acontece de uma palavra ou outra ao contrário se parecer com um palavrão ou uma palavra de carga negativa, porém, em alguns casos, é possível ouvir frases inteiras. Será coincidência?
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No filme The Gate, os moleques giram o vinil ao contrário para ouvir uma mensagem satânica de um álbum de rock. |
Aliás, certos álbuns tinham capas bem assustadoras, como o Abominog, do Uriah Heep (mas era só a capa, as músicas não têm nada de medonho), o Killers, do Iron Maiden, trazendo o morto-vivo Eddie na capa, o primeiro do Black Sabbath e o Born Again, o Bark at the Moon, com o Ozzy transformado em lobisomem, e o Black Metal, do Venom, só para citar alguns exemplos.
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Algumas capas de disco de vinil medonhas dos anos 80. |
Sessões espíritas amadoras – lá pela metade dos anos 80, ocorreu uma febre de brincadeiras do copo, do compasso ou tabuleiro Ouija. Eu experimentei com amigos tanto o tabuleiro – que na época veio como brinde de uma coleção sobre mistérios e ocultismo vendida em bancas de jornal – e a versão do compasso. Com esta versão, certa vez, o espírito se recusou a ir embora e nós simplesmente largamos de mão e fomos fazer outra coisa. Só não foi assustador porque aconteceu à tarde e a casa estava cheia. Nós tínhamos medo, mas fazíamos.
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Capa de uma edição especial da Spektro. Um céu noturno nublado, um cemitério ao fundo, o espectro diáfano da entidade, o ritual, essa capa metia muito medo. Desenho fantástico de Ofeliano. |
Superstições – segundo o escritor português José Cardoso Pires, “Superstição dá azar”. Não deixar o chinelo virado, porque causava a morte da mãe, não passar debaixo de escada (essa tem bastante sentido), todos os azares da sexta-feira 13, os tabus do dia de finados, não quebrar espelho (porque traria 7 anos de azar), não derramar sal, não cruzar com um gato preto, não assoviar à noite, não negar um pedido de mãe, enfim, são tantas. A maioria não tem lógica, mas, como somos um povo muito supersticioso, é comum nos pegarmos fazendo certos gestos (como figa, sinal da cruz, dar três pancadinhas na madeira) e evitando certas situações ou comportamentos, às vezes por puro automatismo. As superstições criam facilmente raízes e acabam moldando hábitos.
Cantigas de ninar e de roda
– a mais sinistra era o “Boi da cara preta”.
A estrofe “Pega esse menino que tem medo de careta” era sombria... Eu
imaginava sempre uma imagem em close da cara de um boi preto ou de um touro. A “Dorme neném que a Cuca vem pegar”: eu tinha medo da Cuca. Uma de roda que não me dava medo, mas
que incomodava, era o “Sambalelê”, por causa do verso “Tá com a cabeça
quebrada”. Era uma imagem aflitiva, a da cabeça quebrada, eu imaginava um corte
grande no couro cabeludo, como uma
fenda, e automaticamente passava a mão na minha própria cabeça. Eu sempre me
lembrava dessa imagem quando eu batia com a cabeça e me machucava. A salvação
nesses casos era a Arnica: havia sempre um adulto que fazia massagem com
Arnica.
Lendas urbanas – rapto de crianças – houve, e não poucos,
acontecendo até hoje, praticados por tarados sexuais e psicopatas, portanto, é
uma lenda urbana que tem seu fundo de verdade, bem como sua utilidade pública.
É um tipo de história antiga, que
já circulava na Idade Média – naqueles tempos, dizia-se que as fadas roubavam
as crianças dos humanos e as substituíam pelas suas; o conto do flautista de Hamelin, que roubou
todas as crianças da cidade para se vingar do calote que recebeu; o racista e
execrável boato sobre o costume que os ciganos teriam de roubar crianças,
este ainda circulava até o início dos anos 80. Mas esses
boatos ganharam um contorno exagerado nos anos 70 e 80. Muitos pais contavam e
recontavam essas histórias para alertar seus filhos, tentando evitar que eles
se aproximassem de pessoas estranhas e, em alguns casos, diante de crianças bem
pequenas, só para assustá-las e fazer com que elas parassem de fazer malcriação
(“Olha, se não parar com a malcriação – ou com a bagunça – , vou chamar o
“Homem do Saco” – que seria um velho maltrapilho, que andava com um saco de
estopa onde ele enfiava as crianças que capturava. Era uma versão humana e mais
crível do “Bicho-papão”). Em São Paulo, houve o boato do palhaço acompanhado
por uma moça vestida de bailarina – ou de enfermeira, era uma variante – que
atraía as crianças oferecendo sorvete ou doces e as levava embora numa Kombi,
possivelmente para roubar órgãos. Essa história foi muito explorada pelo jornal
Notícias Populares. A polícia não conseguiu prender ninguém e a coisa ficou no
terreno da lenda urbana, mas há quem diga que conhece um parente de alguém que
teria vivido esse horror. Nunca saberemos... No Japão contemporâneo, circula
ainda a lenda da mulher da boca rasgada (Kushisake Onna), que é um meio de
assustar as crianças para fazer com que elas saiam da escola e venham direto
para suas casas ao invés de ficarem andando a esmo e, com isso, arriscando-se.
Todo mundo já ouviu uma história desse tipo na infância e isso era assustador.
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Versão alemã do Homem do Saco, por Abraham Bach der Ältere |
Corrente – tratava-se de uma carta, geralmente escrita à mão, sem remetente, que tentava coagir o destinatário a dar prosseguimento àquela “corrente”, ou seja, ele devia copiar o conteúdo daquela carta e enviar para outra pessoa, caso contrário, aconteceria algo ruim – essa era justamente a coação, a carta narrava um exemplo ou mais de pessoas que ignoraram o aviso, “quebrando”, assim, a corrente, e que tiveram suas vidas marcadas pela tragédia a partir daquele momento. Ao se quebrar a corrente, “nascia uma maldição”. Tive uma dessas em mãos, rasguei, joguei os pedaços pela janela e fiquei apavorado com as possíveis consequências, até que minha mãe me explicou que aquilo tudo era mentira. A Internet ressuscitou essa prática, só que a maioria das pessoas já não levava mais a sério, até porque os textos eram ridículos: eles usavam o nome de uma personagem de filme de terror muito conhecida, a Samara, de O Chamado.
Outros boatos e mentiras –
beber leite com manga matava: nunca tive essa oportunidade nem mesmo vontade.
No máximo, parece algo indigesto. O queijo ralado se convertia em vermes no
estômago.
Morcegos, os ratos
transformados – não faço ideia de onde veio essa história, mas um dia
alguém disse que os ratos se transformavam em morcegos nas noites de lua cheia.
Com isso, eu me imaginava um cientista, colocando um rato numa gaiola e
observando o bicho numa noite de lua cheia, só para testemunhar essa bizarra transmutação.
Essa história me causava mais fascínio do que medo. O mesmo efeito tinha a
história de que certos animais, como as lagartixas, eram oriundos de outra
dimensão.
A lista de medos não acaba por aqui. Tem mais. Aguarde a parte 2 deste texto.
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