Brincadeiras cabulosas de áureos tempos




O tempo virou. Começou com uma ventania e, no meio da tarde, veio a chuva, trazida por uma frente fria que começou longe. Esse clima gótico e o fato de ser uma sexta-feira me encheram de nostalgia (ouça Remember a day, do Pink Floyd, e veja na sua tela mental aquele sol pálido e matutino de fotografia antiga ou de sonho). E esse aperto no peito me fez pensar em algumas brincadeiras sinistras que se fazia na infância. Crianças gostam de testar limites e desafiar o medo. Não era à toa que brinquedos de parque de diversão como o Trem Fantasma, a Casa das Bruxas e a famosa Konga (em São Paulo, Monga), a Mulher Gorila, eram concorridos e formavam-se filas imensas diante de suas entradas – eu ficava fascinado com as pinturas macabras da estrutura externa do Trem Fantasma do Tivoli Park, no Rio de Janeiro. Tinha vontade de levar para casa. Adoraria ter as paredes do meu quarto cobertas por aqueles desenhos sinistros. 


Algumas dessas brincadeiras não tinham um nome, tal como as brincadeiras mais tradicionais (pique, amarelinha etc.), portanto eu vou batizá-los de acordo com aquilo a que se propunham. 


Prova do quarto escuro 
Consistia em se colocar para tocar uma música sombria num quarto escuro e tentar permanecer lá dentro – com a porta fechada, lógico – o máximo de tempo possível. O ideal era aguentar o tempo total de duração da música, fosse qual fosse. Geralmente, não passava de 3 minutos. Sei que havia uma variação desse jogo, sem música. Como não participei dessa variante de jogo, não sei opinar se é melhor ou pior. Talvez seja pior sem música. Quando se está com medo num ambiente silencioso, adquirimos uma audição superdotada, e a imaginação dá “asas” aos tímpanos, então qualquer crepitar se transforma facilmente num rosnar de monstro, qualquer som exterior longínquo parece vir de perto – como o canto do saci, pássaro, que quando soa próximo, na verdade está distante, vice-versa, fazendo com que o caçador se embrenhe cada vez mais no mato, ou o canto da Kuntilanak, fantasma de mulher, lenda indonésia, que tem o mesmo modus operandi perverso, torturante, de confundir e perturbar a vítima. 

No meu caso, o set list costumava ser o seguinte: Crucifixion, do Jesus Christ Superstar, que é cheia de risadas diabólicas, coros fúnebres e acordes dissonantes de sintetizador; Alguma das músicas da trilha sonora de O Exorcista, com suas pausas que são quebradas repentinamente por conjuntos de cordas dissonantes e volumosas, só para provocar aquele gostoso jump scare; duas músicas folclóricas do compacto da coleção Povos e Países – África do Sul, que eram bem esquisitas. Numa delas, uma mulher entrava em êxtase e começava a gritar no meio do registro, como se estivesse passando por uma dolorosa incorporação. Também faziam parte dessa “trilha sonora” Mr. Blackwell, do Kiss, com sua introdução bem Evil Dead, e Sunday Afternoon in the Park, do Van Halen, cujos efeitos com distorção, phaser e pitch lhe davam uma sonoridade cavernosa. Não me recordo se alguém conseguia permanecer até o fim de qualquer uma dessas músicas. 

Explorar a casa de madrugada 
Acordar no meio da madrugada, pegar uma lanterna e explorar a “casa” (entre aspas, porque eram apartamentos), especialmente os cômodos mais medonhos, como os quartinhos dos fundos, corredores, banheiros. O mais assustador para mim era acordar. Na época eu tinha o sono muito pesado... 


Observar casas velhas e sombrias ou abandonadas 
Apenas observar mesmo, mantendo uma distância respeitosa – principalmente quando a casa era habitada por pessoas e cachorros do tamanho de cavalos – e fazendo mil especulações (o que será que tem lá dentro? Como serão os moradores?). No caso de serem abandonadas, não entrávamos, como fazem hoje nossos intrépidos caça-fantasmas. Por falar em penetrar em domicílios, tínhamos um plano mirabolante de permanecer na escola após o fechamento para explorá-la. Achávamos que aquela escola era assombrada e que outras coisas esquisitas aconteciam por lá durante a noite. É claro que esse plano não saiu do “papel”, porque era demasiado cinematográfico. Anos depois, quando eu li um conto do Cortázar chamado Escola à noite, eu fiquei imaginando se encontraríamos algo parecido... 


O infame Ouija e suas variantes 
Um clássico. Muita gente participou da “brincadeira do copo”. Um belo dia, chegou às bancas o primeiro volume de uma coleção chamada Ciências Proibidas, Iniciação ao Espiritismo, que trazia como brinde um tabuleiro Ouija, feito de papelão plastificado, dobrável. Esse tabuleiro esteve por toda a parte, meus amigos mais próximos tinham. 


Numa noite, fizemos uma séance na casa do meu pai, com esse tabuleiro (éramos seis). Movemos a mesa para o centro da sala, acendemos velas, apagamos as luzes e começamos. Não aconteceu nada de extraordinário durante o “jogo”, tanto que não me lembro das perguntas que foram feitas nem da identidade do espírito que entrou em contato conosco. Sempre ficava aquela sensação de que alguém estava empurrando o copo, isso é muito comum. Porém, depois... 


Logo após o fim da sessão, quando acendemos as luzes e passamos a discutir acaloradamente o que tinha acontecido – uma parte dos participantes era cética, outra já acreditava –, a namorada do meu pai foi tomada por uma forte sonolência e foi se deitar. A primeira coisa curiosa é que ela não tinha o costume de dormir cedo, muito menos num sábado, e havia passado um pouco das 22h. Ela se despediu de todos e foi para o quarto. Continuamos a conversa. Pouco depois, meu pai se ausentou por alguns instantes da sala e, quando voltou, nos chamou, em voz baixa, dizendo “Venham ver uma coisa”. Nós o seguimos. Ele abriu a porta do quarto de dormir e, mesmo na entrada, deu para perceber uma variação absurda de temperatura: o quarto estava gelado. Tão frio, que saía aquela fumacinha ao se respirar. Não havia ar-condicionado, o ventilador estava desligado e a moça dormia profundamente, sem se incomodar com a temperatura (meu pai teve o cuidado de cobri-la). Era algo realmente inexplicável.


Havia variantes desse jogo: o do compasso, que era feito com um compasso aberto, preso a um livro com uma linha de costura; Combinava-se a regra com a entidade: se o livro virava para a direita, era sim, para a esquerda, não; esse era para dois participantes; e tinha o do copo, mas sem tabuleiro: as pessoas costumavam recortar papel em forma de quadradinhos, com as letras do alfabeto escritas neles, e dispô-los em círculo, numa superfície de mesa ou mesmo no chão. 


O Ouija apareceu em muitos filmes entre os anos 70 e 80. O Exorcista, 1973 (o Pazuzu se manifesta inicialmente no tabuleiro como o simpático Capitão Howdy), Amityville 3-D, de 1983, Mensagens Mortais (Deadly Messages), de 1985, com a fala que se transformou em bordão, “Há alguém aí?”; Espírito Assassino (Witchboard), 1986, que teve duas sequências; e o mexicano e super trash Don’t Panic, de 1987, no qual os amigos da onça de um rapaz o presenteiam em seu aniversário com um tabuleiro e, como sempre, isso traz funestas consequências. 

O presente de grego em Don't Panic.



A arrepiante pergunta: "Há alguém aí?" (Mensagens Mortais).


Não é uma brincadeira recomendável e isso é unânime entre diferentes correntes de estudo do oculto. Você pode despertar forças difíceis de controlar ou atrair coisas negativas igualmente complicadas de se dispersar. Não faça isso em casa. 


Até o Riquinho entrou na onda das séances. Wise up, kiddo!


Ah, as velhas tardes depois da escola, as sextas e sábados, quando tínhamos mais tempo livre e tanta coisa para explorar e aprender... Bons tempos ventosos e chuvosos que não voltam mais.








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