A Era dos Bebês-diabo

Entre o final dos anos 60 e metade dos anos 80 houve uma forte presença de bebês-diabo na cultura do nosso cansado planeta. Eles apareceram nos quadrinhos, no cinema, nas artes de capas de álbuns de heavy metal e até mesmo em manchetes de um controverso jornal de São Paulo de tendências sensacionalistas.

Tudo parece ter começado com o filme O Bebê de Rosemary, em 1968, adaptação de Roman Polanski para o cinema de um livro de Ira Levin. O bebê em questão é fruto de uma relação involuntária entre Rosemary e o próprio Satã, encarnado em seu marido, promovida por um culto de bruxos e bruxas. A intenção era trazer ao mundo o filho do diabo, que seria o rei e redentor de todos os perseguidos e queimados. Para decepção de muitos (não minha), o bebê-diabo não é mostrado, apenas Rosemary revela seu estranhamento a respeito dos olhos da criança (“O que fizeram com ele? O que fizeram com os olhos dele?”), ao que Steven, bruxo mestre do coven responde: “Ele tem os olhos do pai (...) Satã é o pai dele, não o Guy!”, e Minnie, respondendo ao desesperado “Não pode ser!” de Rosemary, comenta: “Olhe as mãos dele”, sendo seguida por outra das bruxas, Laura Louise, que diz, toda orgulhosa: “E os pés!”. Isso é suficiente para estimular a imaginação do espectador, fazendo com que ele mesmo construa a aparência do bebê-diabo (para mim e para muitos, creio eu, o bebê tinha o aspecto de um fauno, mas voltaremos a isso). Em 1976 foi lançada uma sequência feita para a TV, na qual o bebê-diabo aparece crescido e com a aparência de um humano ordinário. 


Mia Farrow, interpretando uma mãe aterrada com seu rebento brasinhesco.


Damos um pequeno salto no tempo e, em 1974, é lançado o primeiro filme do que veio a ser uma trilogia (e que se transformou num clássico trash): It’s Alive. Nele, um bebê-monstro mata toda a equipe médica que participou de seu parto e foge do hospital, continuando a matar qualquer infeliz que cruzasse o seu caminho. O enredo desse filme parece ter sido inspirado naquilo que ficou conhecido como “A Tragédia da talidomida”, ocorrida nas décadas de 50 e 60. A talidomida era um remédio utilizado para diminuir os enjoos de mulheres grávidas. Aos poucos, foi se descobrindo que o fármaco provocava mutações no feto (desenvolvimento incompleto e defeituoso dos membros, malformação de vísceras, entre outros problemas). Doze mil crianças foram atingidas.


O bebê-monstro de It's Alive, nosso campeão de monstruosidade.


Agora, façamos uma visita ao tenebroso e enevoado reino dos quadrinhos de terror e de fantasia. Em abril de 1977, a revista Kripta, da RGE, prima brasileira das norte-americanas Eerie e Creepy, da Warren, publicou (em sua oitava edição) uma história concebida e ilustrada pelo fantástico Tom Sutton, chamada A Prole da Coisa Medonha (publicada originalmente em 1976). Essa história, de terror cósmico bem lovecraftiano, mostra um ocultista caçador de monstros, Fathom Haunt, que volta, após dez anos, a combater uma criatura abominável, vinda de outra dimensão para matar mulheres em seu primeiro estágio de gravidez. A criatura tem a aparência de um bebê, mas é gigantesca e monstruosa, com garras, dentes afiados e meia dúzia de olhos. Esse foi meu primeiro contato com bebês monstruosos. 


O abominável bebê extradimensional de Tom Sutton.

Na parte fofa dos quadrinhos, não posso esquecer de mencionar o querido personagem Brasinha (Hot Stuff), o diabinho bebê – que usa fraldas –, que vive mal-humorado e fazendo traquinagens com seu tridente mágico. O personagem surgiu em 1957, pela Harvey Comics, e aqui no Brasil, foi publicado entre os anos 60 e 80, tendo voltado nos anos 2000.


Brasinha, um querido.


Novamente na Kripta, na edição de número 20 (março de 1978), o mestre da nona arte, o maravilhoso Richard Corben, ilustrou, com seus desenhos tridimensionais, de um realismo de fotografia, quase vivos, uma história do excelente roteirista Nicola Cuti, chamada de Instinto (no original, Instinct, 1977). A narrativa nos mostra um rei que, beirando a terceira idade e ansioso para ter um herdeiro a quem passar a coroa, se casa com uma jovem vinda de um reino distante e obscuro. A moça lhe dá duas lindas filhas, mas o rei, que precisa de um filho homem para garantir a continuidade de sua dinastia, insiste e tenta engravidar novamente sua rainha, quando as meninas já estão um pouco crescidas. Porém, a rainha, ao longo da gestação, vai adquirindo um comportamento estranho, chegando mesmo a morder uma de suas meninas. Sua criada confessa ao rei que o reino delas é habitado por um povo muito primitivo, cujos ancestrais eram diferentes dos humanos, e que eles cultuam um deus roedor. Para encurtar a história: a rainha dá à luz a um híbrido de rato e humano. Esse foi o segundo bebê-monstro da ficção que me marcou. A ilustração que fecha a história é simplesmente chocante.


O grotesco bebê roedor de Richard Corben.


Voltando a 1977, um bebê é possuído pelo demônio (ficando transfigurado, com uma aparência horripilante), e Gabriel, o Exorcista,  personagem da Marvel Terror, é chamado para confrontá-lo e livrar a pobre criança do mal. Esse é o enredo de A Inocente Endemoninhada, publicada na revista Histórias Fantásticas nº 4, da Bloch Editora. Infelizmente, a Bloch nem sempre publicava os créditos das histórias, mas eu presumo, pelo traço, que o desenhista seja o Billy Graham.

Um bebê endemoninhado não é coisa para amadores, muito menos para mães de primeira viagem. "Liga" no exorcista. Arte de Billy Graham, I presume.


Nos lisérgicos e incríveis anos 70, circulava em São Paulo um jornal intitulado Notícias Populares, carregado de manchetes policiais (muitas delas duvidosas) violentas e eróticas. Em 1975, num Dia das Mães, um bebê com malformação teria nascido num hospital de São Bernardo do Campo. O fato, que infelizmente não é tão incomum, faz parte da natureza, foi convertido pelo jornal numa história cinematográfica. Segundo a manchete, o bebê nasceu com chifres, corpo coberto de pelos e uma cauda de 5cm. Como se não fosse suficiente, rosnava para os médicos e enfermeiras e olhava para a mãe de forma ameaçadora. E mais: teria ameaçado a todos de morte. Era o filho do anticristo que tinha nascido no Brasil  (curiosidade: A profecia [The Omen], livro e filme, surgiram em 1976, mas o filme e o livro O Exorcista já eram conhecidos no Brasil). A tiragem do jornal pulou de 80 mil para 200 mil exemplares. A notícia rendeu uma série de reportagens (37 ao todo), com testemunhos de pessoas que teriam visto o bebê-diabo e de suas diabruras a cada dia mais assustadoras. Muito provavelmente, essa história bizarra foi fruto de uma trip solitária de um dos jornalistas ou até mesmo de um brainstorm regado a Cuba Libre ou Hi-Fi, dois drinques muito populares na época, porque o filhote do canhoto nunca foi fotografado nem filmado.


O bebê-diabo (que não houve) do Notícias Populares.


Em 1983, a Heavy Metal magazine, na edição de julho, nos brindou com uma ilustração de contracapa, creditada a Bob Rakita, mostrando uma mamãe alien com um simpático e sorridente bebê de outro mundo. Eu estava apreciando esse desenho quando minha mãe passou por perto, puxou a revista para ver melhor do que se tratava e comentou: “Que horror, coitado do bebê!”


Alien baby, Heavy Metal Magazine.


Outro terreno fértil para monstros e demais criaturas fantásticas é o mundo da música, notadamente o do heavy metal. Em agosto de 1983 (um mês após a contracapa da Heavy Metal; interessante como certas ideias ficam pairando no ar), o Black Sabbath, à época já um dinossauro do heavy metal, lançou o álbum Born Again, e sua capa, que virou uma das mais icônicas e controversas capas de álbuns de rock, trazia o desenho de um terrificante bebê-diabo, chifrudo, vermelho como o pai dele gosta, chorando e mostrando suas garras pontudas e dentes vampirescos. A arte é de Steve Joule. Há quem odeie essa capa – eu adoro, acho que é a cara do Sabbath – e, por causa disso, ela figura em várias listas de Internet, do tipo “As 10 piores capas do rock de todos os tempos”. O que eu acho interessante nessa capa é que ela é, ao mesmo tempo, bem pop art e new wave, por causa das cores fortes – o vermelho predominante na criatura e o azul do fundo –, e macabra, sombria (apesar do colorido). Muita gente nos anos 80 associava esse bebê-diabo da capa ao bebê de Rosemary. Ele bem que poderia ser...


O mais icônico.


Em 1985 é lançado Bonded by Blood, da banda trash Exodus. A capa traz bebês siameses, um, normal, assustado com o outro, monstruoso e diabólico, rasgando o lençol do berço com suas garras. Arte igualmente icônica e controversa, também presente nas listas de piores capas. Eu aprecio, apesar dos traços meio toscos, mas a capa produz o efeito desejado: incomoda, dá medo. Essa e o Born Again eram capas que a molecada olhava meio que de longe, com um certo medo de ouvir os vinis, porque sabia, por meio dos mais velhos e mais ousados, que a temática das bandas era satanismo e terror, e intuía que ouvi-los poderia ser um passo além no terreno espinhoso do mal.


Os siameses, demônio e anjo.


Ainda no universo das capas de disco, aproveito para citar a capa do álbum Count on Dracula (1980), da banda alemã de krautrock Birth Control, pouco conhecida aqui no Brasil. Nessa capa, o bebê não é o monstro, mas uma vítima, de sua própria mãe (?), uma vampira! Uma capa bem bolada.


Aqui, o monstro é a mãe...


Voltando ao cinema, em 1986 temos um demônio-bebê, em Demons 2, clássico trash de Lamberto Bava. Em A Mosca, de David Cronenberg, temos a Geena Davis dando à luz uma larva e, em 1995, bebês lindos (durante um pequeno trecho do filme, depois eles crescem), mas com traços peculiares (cabelos brancos e olhos dourados), filhos de extraterrestres destruindo e dominando uma cidadezinha com seus poderes telepáticos e telecinéticos em Village of the Damned ou A Cidade dos Amaldiçoados, do sensacional John Carpenter (baseado no livro The Midwich Cuckoos, do fantástico autor de sci-fi John Wyndham). Esse é um caso de lobo em pele de cordeiro: as crianças são monstruosas porque não têm empatia alguma e cometem atrocidades para se impor como espécie (trata-se do apocalipse de fator extrínseco do Rubens Scavoni). Em 1996, temos um bebê-zumbi ou seja lá o que for em Braindead ou Fome Animal, podreira de Peter Jackson. Por último, outro bebê-alien, além do da contracapa da Heavy Metal, criaturinha com tentáculos, em M.I.B. ou Homens de Preto, de 1997.


É claro que eu não conheço tudo, então essas são as referências que eu tenho do assunto, as que marcaram minha infância e adolescência. Do final dos anos 90 em diante, eles sumiram. Saíram de moda. Cresceram e não procriaram.  Nostálgicos com os tempos de fama, voltaram, derreados, andando como humanos, ou flutuando, para suas dimensões, planetas ou infernos de origem.

 

 

 

 

 

 

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